Emocionante conversa com mulheres e homens transgêneros encerra a Mostra de Documentários e Curtas Transdiversidades, no Rio, realizado em comemoração ao dia da Visibilidade Trans.


Dando sequência à programação oficial do Rio de Janeiro para marcar o Dia da Visibilidade Trans, domingo (29) ocorreu no cinema do CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), a mostra de Documentários e Curtas Transdiversidades, com a exibição do curta “A Inevitável História de Letícia Diniz”, do cineasta e dramaturgo Marcelo Pedreira; com a mostra de 13 mini-docs da série “Noturnas”, do cineasta Alan Ribeiro; e com o lançamento da série “Tempero da Diversidade”, coordenado pela professora Doutora Jaqueline Gomes.

Finalizando o evento promovido pela Rede Trans Brasil, Instituto Federal do RJ e Rio Sem Homofobia, uma conversa emocionante fechou a noite, e contou com a presença da professora doutora Jaqueline Gomes de Jesus; Kakau Ferreira, Conselheira Estadual LGBT do RJ; Allan Ribeiro, cineasta; Denise Taynah, gestora; Samilla Marques, coordenadora de Diversidade Sexual da Prefeitura Municipal de Pacatuba; Beth Fernandes, professora e psicóloga; Luana de Jesus, da Secretaria da Rede Trans de Santa Catarina; Lucca, youtuber do canal “Ocupei”; Marina Reidel, Coordenadora Nacional LGBT da Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério da Justiça e Cidadania; Tathiane Aquino de Araújo, presidenta da Rede Trans Brasil e Cláudio Nascimento, coordenador do Programa Rio Sem Homofobia, e que mediou a conversa.

Minha família toda é evangélica. Eu procurei a vida toda a cura pra uma doença que nunca existiu. A gente constrói história todo dia. Por isso um evento como esse é tão importante. Eu me emociono em ver tantas histórias - Samilla Marques.

(IN)FORMAÇÃO

Allan, um homem cisgênero, isto é, que se identifica com o seu gênero biológico, dirigiu a série “Noturnas”, composta por 46 mini-documentários que trazem um levantamento histórico das principais artistas da noite do Rio de Janeiro. 

Ele abriu o bate-papo explicando o porquê do seu interesse pelos assuntos transgêneros, problematizando a falta de informação disponível para as pessoas: “eu pensava: ‘será que não avisaram pra essas pessoas que elas podem transar com homens? 

Que não precisa se vestir de mulher pra isso?’", indagou.

De fato, até hoje pouco se fala em transgênero masculino. 

Com a popularização das redes sociais é que o transhomem (pessoa que nasceu no sexo feminino, mas sente a necessidade de ser reconhecida socialmente como homem) começou a ser visto e pôde levantar suas questões, trazendo o debate para a sociedade e ajudando a propagar o assunto, seja escrevendo um blog, ou compartilhando em vídeos suas histórias.

Esse é o caso de Lucca, homem trans de 21 anos, graduado em comunicação social e dono do canal “Ocupei”, no YouTube: 

“Aposto que todo mundo aqui conhece várias mulheres trans, mas poucos homens trans.

 A sociedade não aceita o fato de uma mulher sair de um cargo de opressão para um cargo de opressor. 

E é contra isso que a gente luta. 

A gente quer quebrar esse estereótipo de que o homem tem que ser machão, escroto”, explicou.

(IN)VISIBILIDADE

Lucca também criticou a (in)visibilidade dada pelos meios de comunicação de massa, que quase nunca representam a transgeneridade masculina e, quando o fazem, é de forma caricata, muitas vezes dando sentidos pejorativos e reforçando os estereótipos e preconceitos que existem contra esse grupo.

 Para ele, a solução está nos veículos de comunicação alternativos, que dão espaço para esses grupos e inserem o debate, urgente na sociedade: 

“As grandes mídias não vão nos representar nunca. 

Por mais que queiram, sempre vão nos estereotipar", completou.

Denise Taynah, gestora da Superintendência de Direitos Individuais, Coletivos e Difusos (SUPERDIR) da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH), também endossou essa questão, reivindicando o fato de muitos veículos reforçarem a opinião pública de que pessoas trangêneras são perversas, vulgares, inferiores ou marginais:

 "A informação tem que existir. As pessoas têm que saber que nós temos consciência, que nos respeitamos e que nos amamos", finalizou ela.

APARTHEID DE GÊNERO


Jaqueline de Jesus, intelectual, psicóloga, professora, pesquisadora, escritora e ativista é uma dessas pessoas que luta contra a transfobia e pela propagação da correta informação. 

Atualmente, Jaqueline é professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) campus Belford Roxo, e foi a segunda mulher trans a obter um diploma de doutorado no Brasil. 

Para ela, seu estudo é militância e “não é para as pessoas trans, é para a população cis. A gente trabalha para a humanização. Temos que nos libertar dessa cadeia: do apartheid de gênero e segregação racial", afirmou ela.

Beth Fernandes, professora, psicóloga e integrante da Rede Trans Brasil enfatizou o preconceito que existe dentro do próprio movimento de mulheres, seja trangênero ou feminista, corroborando para essa separação mencionada por Jaqueline: 

“Eu tenho amigas que não querem fazer a cirurgia. 

E elas não deixam de ser menos mulheres por isso. 

Uma vez eu fui num encontro feminista na Bolívia. 

Quando eu estava na fila, uma pessoa falou pro segurança: 'a Beth pode entrar porque ela tem [fez com a mão sinal que remetesse a uma vagina]. 

Naquele momento, foi como se a mulher dissesse: ‘Beth, vai embora’”, lamentou.

MACHISMO


Kakau Ferreira, conselheira Estadual LGBT do Rio de Janeiro e protagonista do primeiro curta da série “Tempero da Diversidade”, teve na noite de domingo particularidades nunca antes reveladas, pois por muito tempo viveu e sofreu com essa sociedade machista e LGBTfóbica, que oprime, machuca e mata:

 "Eu vivia num relacionamento com muita pressão. 

Se eu assumisse pra sociedade, eu chegava em casa e apanhava. 

Porque ninguém podia saber que eu era casada com um militar", revelou Kakau, que foi casada por 12 anos com um militar do exército.

Segundo o “Dossiê: a geografia dos corpos das pessoas trans", lançado no último sábado (28), no Rio de Janeiro, no ano de 2016 o Brasil teve 54 casos de violação de Direitos Humanos reportados pela imprensa e redes sociais, e em relação às tentativas de homicídio, 52 registros foram divulgados.


A religiosidade da minha família me abafava e me impedia de falar quem eu era - Kakau Ferreira.

PROSTITUIÇÃO


Luana de Jesus, da secretaria da Rede Trans de Santa Catarina, ativista e prostituta, criticou quem criminaliza a prostituição, ramo que abriga tanto as que não gostam (e que portanto estão ali por falta de oportunidade de trabalhos formais), quanto as que gostam (e que não desejam trocar de profissão), como Luana:

 "Quando as pessoas falam que a prostituição é um profissão suja, um submundo, me dói muito. 

Eu levo a prostituição como uma profissão. 

Eu fui presa em Florianópolis indo pra escola. 

Eu não tava me prostituindo. 

Eu fui presa por ser travesti, e não por ser puta. 

A sociedade tem que desmistificar a profissão. 

Eu gosto de me prostituir. Marina não gosta, não se prostitui.

 É simples", declarou.

Ainda de acordo com o “Dossiê: a geografia dos corpos das pessoas trans", “a pesquisa da rede europeia Transgender Europe (TGEU) aponta que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans e gênero-diversas no mundo” (2017, p. 49).

RESISTÊNCIA

Ativista LGBT e coordenadora de Diversidade Sexual da Prefeitura Municipal de Pacatuba, Samilla Marques relembrou algumas histórias da sua infância e ressaltou a importância de políticas públicas e resistência para a construção de um futuro melhor para a sociedade. 

"Quando eu era criança, eu falei com a minha mãe: 'mãe, quando meu pintinho vai cair pra nascer uma florzinha?'.

 Ela disse: ‘não, isso não vai acontecer.

 Você nasceu assim e vai ficar assim’. 

Aí eu disse: ‘mas a gente não pode escolher isso?’. ‘Não, você não pode escolher!’".

Hoje, felizmente, Samilla Marques cresceu e viu que pode sim ser o que quiser. Frente os percalços que uma pessoa trans encontra pelos caminhos da vida, e os prejuízos que esses obstáculos lhe causam (físicos, emocionais e sociais), resistir é um ato de amor. 

De amor a si própria/próprio e à sociedade:

 “Hoje eu acredito que a gente tem que ter resistência. 

A gente tá construindo pros netos dos nossos netos.

 Eu fico muito feliz de poder ser o tijolo dessa construção", orgulha-se.


Comentarios

Entradas más populares de este blog

De crime a arte: a história do grafite nas ruas de São Paulo

30 museus virtuais para você visitar sem sair de casa

Histórico da luta de LGBT no Brasil

Cinco nomes de Sodomitas que você respeita

300 cineastas denunciam o retrocesso da Ancine no Urso de Ouro em Berlim

O Corredor das Águas - Cretã Kaingang - IV

Casa para abrigar LGBTs expulsos pela família é inaugurada após 'vaquinha'