Ecossistema de Desinformação e Sleeping GiantsDE: REDAÇÃO DISPARADA / 19 HORAS ATRÁS

O ecossistema de desinformação foi objeto de interessante construção por Claire Wardle, em fevereiro/2016, cujo conteúdo recomendo o acesso para melhor compreensão. Quase na mesma época, nascia o Sleeping Giants, plataforma que visa combater a desinformação através do estrangulamento financeiro dos sites e canais que as propagam. Tudo isso antes mesmo das chamadas fake news obterem repercussão global durante a campanha presidencial norte-americana, deixando claro que o fenômeno lá observado foi apenas o passo final de algo muito maior.
Antes de entrar propriamente no tema, algumas considerações preliminares. A conjuntura social contemporânea faz com que seja praticamente impossível que alguém ainda desconheça o termo “fake news”. Embora seja normalmente traduzida como “notícia falsa”, preferimos adotar o termo “notícia fraudulenta”, como proposto por Diogo Rais. A diferenciação é bastante importante. O problema jurídico não se dá por meio da diferenciação verdadeiro e falso, mas sim na lesão a um direito. Verdadeiro e falso é irrelevante para o direito, quando não existe dano.
O Direito se preocupa com o dano. Assim, a tradução de “fake News”, do ponto de vista jurídico, deve ser encarada como “notícia fraudulenta”, ou seja, aquela que tenha potencial para causar um dano a alguém ou à coletividade.
É indiscutível o potencial lesivo de notícias fraudulentas, principalmente para o exercício da democracia, mas também em tempos de pandemia. Giuliano Da Empoli conta a história de como os movimentos políticos de extrema direita se apropriaram do método de espalhar fake news e teorias da conspiração para atingirem seus objetivos políticos, em movimentos iniciados na Itália e depois difundidos nos EUA, na Hungria e, finalmente, no Brasil.
O surgimento e estabilização de sites como Breibart News, conhecido ponto de conexão de conteúdos de extrema direita (verdadeiros e falsos), também se dá nesse contexto e foi muito bem utilizado nas eleições norte-americanas de 2016, ainda que existam estudos que demonstrem sua baixa eficiência em angariar votos de eleitores indecisos.
Um adendo. A discussão aqui não é política. Apesar da utilização massiva de fake news aparentemente ter surgido em movimentos de extrema direita, isso não faz com que apenas eles estejam utilizando atualmente. Todavia, negar que são eles os precursores e maiores propagadores é anticientífico.
Por razões sociológicas, sites de teorias da conspiração atraem muito mais público do que sites convencionais. As narrativas são mais emocionantes e tentam prender não pelo racional, mas por uma lógica própria, sentimental.
Quando pensamos em publicidade, não é complexo entender que quanto mais acessos um determinado site possui, mais valioso ele é para um anunciante. Assim, mantida a lógica acima mencionada, as fake news vendem muito mais do que as notícias verdadeiras. E esses sites conseguem obter importantes recursos financeiros quando percebem isso; e cada vez mais se tornam fortes e influentes.
O recurso de publicidade online mais comum e simples é o “adsense” do Google, que, por meio de cookies, direciona o anúncio nas páginas acessadas pelo usuário. A publicidade é dirigida a cada pessoa de maneira diferente, levando em consideração o perfil virtual daquela pessoa (histórico de navegação, idade, gostos, gênero, etc).
Ao perceber como tudo isso funciona e está interconectado, surgiram ativistas preocupados em tentar derrubar esses sites de compartilhamento de fake news. Percebendo que era impossível bater de frente – estratégia que se mostrou falha nas eleições americanas, italianas e brasileiras – eles resolveram atacar o aspecto financeiro, questionando as empresas que fazem publicidade nesses canais.
Surgiu assim o Sleeping Giants, que acaba de chegar ao Brasil por meio do Twitter. A página depende da colaboração dos usuários, que precisam acessar o site e mandar print da publicidade que está sendo veiculada (lembrando que ela é diferente de pessoa para pessoa). Após checar os fatos, o Sleeping Giants entra em contato com as empresas questionando se elas realmente apoiam essas páginas/canais de compartilhamento de fake news (quando não de criação).
Em regra, as empresas não apoiam e nem gostam de se ver atreladas a fatos socialmente condenáveis. Dessa forma, elas acabam ordenando que o Google não mais permita que a publicidade apareça nessas páginas. Com isso, o financiamento diminui e essas páginas passam a ter dificuldade de sobreviver.
Apenas nesta semana, um determinado site no Brasil perdeu publicidade de empresas como Dell, Banco do Brasil, Submarino e PicPay.
Em tempos de desinformação e de tentativa desesperada de frear as notícias fraudulentas, soluções que atacam a fonte de renda parecem ter acertado o alvo e se revelam mais efetivas do que a tentativa de criminalização que de tempos em tempos surge no Congresso Nacional.
A dificuldade de regulação destes novos paradigmas trazidos pela tecnologia é ponto recorrente. Se novos tempos exigem novas soluções, a resposta parece estar nas teorias que têm como base a utilização da própria arquitetura da rede para maximizar a tutela jurídica, das quais destaca-se a tese de Lawrence Lessig. Para ele, a arquitetura (inclusive softwares e hardwares), também chamado de “código” é um importante fator para a regulação da Internet, chegando ao ponto de dizer que o “código é a lei”.
Ele chama atenção para o fato do Direito, sozinho, não conseguir dar todas as respostas, e que é necessário conhecer a estrutura da rede. Sem estes dois conhecimentos, a regulação da Internet (e seus atores) não é possível da maneira adequada.
Mais do que isso, mostra que é possível a inserção dos valores jurídicos que se deseja tutelar no próprio desenvolvimento de softwares e hardwares. Ótimo exemplo disso são os movimentos de “privacy by design” e “privacy by default”, que implicam no desenvolvimento de plataformas (para qualquer finalidade) que já tenham a proteção da privacidade de seus usuários como valor tutelado desde a concepção da plataforma (by design) e que já venham como regras de privacidade assinaladas ao máximo (by default), ainda que seja possível ao usuário alterar essas configurações se assim desejar. Hartzog Woodrow também tem enfrentado esse tema da regulação com posicionamento que merece a leitura.
Considerando que é impossível impedir a criação de notícias fraudulentas e a criminalização do compartilhamento é medida insana (várias pessoas inocentes – idosos principalmente – seriam presos), atacar a fonte de renda destas plataformas é solução bastante inteligente. Ainda que empresas possam financiar movimentos políticos em geral e qualquer tema que considerem relevante, não se pode admitir que financiem o ecossistema de desinformação (tal qual é inadmissível que financiem criminosos, redes de tráfico infantil etc.).
Será interessante acompanhar nas próximas semanas o posicionamento das empresas que serão chamadas a se manifestar. Nos EUA, local onde o movimento teve início há 4 (quatro) anos, o Breitbart News – e outros canais – já perderam milhões e milhões de dólares, além de CEOs terem sido demitidos por permitirem o financiamento de redes de desinformação.
No meio dessa zona de guerra, o Supremo Tribunal Federal deve votar logo mais a eventual inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, o que pode resultar na responsabilização das plataformas pelos conteúdos fraudulentos que lá circulam. A discussão envolve a liberdade de expressão na rede e a responsabilidade das plataformas de mídias sociais, o que deve representar um julgamento muito interessante e rico.
Por Marcelo Chiavassa de Mello Paula Lima, Professor de Direito Civil, Direito Digital e Direito da Inovação no Mackenzie. Doutor em Direito Civil (USP). Mestre em Direito Civil (PUC). Especialista em Direito Civil (Università di Camerino). Especialista em Direito Contratual (PUC). Coordenador do Grupo de Pesquisa em Direito, Inovação e Tecnologia (Mackenzie). Advogado.

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